terça-feira, 22 de novembro de 2022

Sobre a loucura e outros assuntos, Kenzaburo Oe

«De fato eu apreciava bastante esse desenho. A figura tinha sido impressa originariamente na capa de uma coletânea de ensaios do dr. W, "Sobre a loucura e outros assuntos" (Kyoki ni tsuite nado), publicada logo após a guerra. Segundo me lembro, eu havia mandado emoldurá-la e a pusera em meu gabinete porque fora profundamente influenciado pelo seguinte trecho desse livro: "Grandes obras inexistiriam sem loucura, dizem alguns. É mentira. Obras realizadas com loucura vêm sempre acompanhadas de devastação e sacríficio. Obras verdadeiramente grandiosas são realizadas de maneira honesta, persistente e firme por indivíduos humanos com a acentuada consciência da própria suscetibilidade à loucura".»

Kenzaburo Oe, Jovens de um novo tempo, despertai, tradução Leiko Gotoda (São Paulo: Companhia das Letras, 2006), 73.

domingo, 6 de novembro de 2022

«A escrita», Sophia de Mello Breyner Andresen

No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho
Lord Byron usava as grandes salas
Para ver a solidão espelho por espelho
E a beleza das portas quando ninguém passava

Escutava os rumores marinhos do silêncio
E o eco perdido de passos num corredor longínquo
Amava o liso brilhar do chão polido
E os tectos altos onde se enrolam as sombras
E embora se sentasse numa só cadeira
Gostava de olhar vazias as cadeiras

Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital
Mas a escrita exige solidões e desertos
E coisas que se vêem como quem vê outra coisa

Podemos imaginá-lo sentado à sua mesa
Imaginar o alto pescoço espesso
A camisa aberta e branca
O branco do papel as aranhas da escrita
E a luz da vela — como em certos quadros —
Tornando tudo atento


Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra poética (Lisboa: Assírio & Alvim, 2015).

«Soneto sentimental», Paulo Henriques Britto

A surpresa do amor — quando já não se
espera do mundo nada em especial,
e a evidência de que os anos vão se
acumulando sem nenhum sinal
de sentido já não dói nem comove —
quando em matéria de felicidade
não se deseja nada mais que uns nove
metros quadrados de privacidade
para abrigar os prazeres amenos
do sexo fácil e da literatura
difícil — eis que então, sem mais nem menos,
como quem não quer nada, surge a cura —
definitiva, radical, imensa —
do que nem parecia mais doença.

 

Paulo Henriques Britto, Mínima lírica (São Paulo: Companhia das Letras, 2013).